domingo, setembro 30, 2007

do baú das memórias

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Este texto é uma memória com particular importância para mim. Esta versão é de Outubro de 2002 e não me canso de a ler e reler, pois sempre que o faço novas imagens assomam ao meu espírito, em vagas imparáveis, espessas ondas que me transportam para aqueles tempos felizes em que fui criança. Não é por acaso que sou um apaixonado pela arte da Fotografia. Deixo-o aqui, para vossa fruição, ao jeito de saudade e homenagem a esse homem extraordinário que foi o meu tio e padrinho Virgílio Costa:

a fotografia

- Zézinho, queres vir para casa da tia? Era quanto bastava para eu saltar e pular como se de súbito tivesse ensandecido, gritando que sim, que sim, sorriso rasgado de orelha a orelha, pois ir para casa da tia significava passar alguns dias em Lisboa, na casa da tia na estrada de Benfica e ir com o padrinho, fotógrafo de profissão, que era também tio pois era marido da tia, mas que todos preferíamos tratar por padrinho, para a casa de fotografia que ele tinha na mesma rua, mesmo em frente ao já demolido Palácio dos Sanches Baiena ou de Benfica.

A casa de fotografia ficava num primeiro andar por cima de uma taberna escura de tecto muito baixo, e era conhecida como “Fotografia Nice”, mas todos na família a tratavam carinhosamente apenas por a “Fotografia do Padrinho”. Ir com o padrinho para a Fotografia era penetrar num universo maravilhoso de sonho, fantasia e mistério. Era como entrar num sótão velho, cheio de coisas para descobrir, de luzes e cortinas pretas, como um teatro permanentemente montado, aguardando as pancadas de Moliére para a entrada dos actores e começo do espectáculo. A sensação de entrar num sótão era aumentada pelo acesso, feito por uma escada velha e íngreme de degraus de madeira, dramaticamente gastos e que rangiam a cada passo dando um ambiente fantasmagórico à subida. Entrava-se por uma porta com uma mola de correr que engenhosamente fazia soar uma campainha: trimmmm...

Lá dentro, respirava-se o passado. Armários antigos e gavetas que guardavam sabe-se lá o quê. Talvez memórias de quando aquela casa era o local de habitação do padrinho e da família no tempo em que se racionavam os géneros alimentícios. Mas eu tentava saber o que continham tudo o que fosse gaveta ou caixa e abria todas as que podia, atraído por uma curiosidade incontrolável. Era com um misto de prazer e fruto proibido que abria as pequenas caixas de cartão colocadas às dezenas, disciplinadamente, numa prateleira e de cujo interior extraía velhas chapas de vidro, que guardavam antigos rostos em negativo para os quais eu olhava em contra-luz procurando ver o verdadeiro rosto daquelas pessoas, que eu não conhecia mas que ali via aprisionadas para a eternidade, tal como tinham estado naquele dia, naquele instante, agora tornado passado.

A prensa era um brinquedo fantástico pois marcava, com cunhos, as folhas de papel que lá metia. E esmagava sem piedade as molas da roupa, em madeira, que serviam para pendurar as fotografias a secar. Era um gozo imenso rodar aquelas duas grandes bolas metálicas do braço da prensa e senti-la esmagar, num gemido surdo, os pequenos pedaços de madeira. Havia também aparelhos estranhos de funções desconhecidas, projectores de luz, tripés e uma fabulosa máquina de estúdio, em madeira, com um grande fole negro e um pano preto na retaguarda. Máquina que, como o padrinho me mostrou, punha as pessoas de cabeça para baixo. Juro! Juro...! Caixas de luz onde, a um toque num pequeno interruptor, se acendia no centro um rectângulo de luz, no qual, a pincel e tinta da china, negra como carvão, com mão de artista e toque de génio, o padrinho retocava os negativos, para obter fotografias perfeitas. E obtinha! Mas o melhor de tudo era quando o padrinho me levava para a câmara escura. Era como se eu fosse também um actor naquele espectáculo, com o privilégio de conhecer, não só o palco, mas também os bastidores e o segredo dos cenários.

A velha cozinha transformada, de um lado a bancada com o ampliador e do outro uma enorme bacia de pedra com um ralo no centro e com a água sempre a correr e as tinas dos banhos. Entravamos. A pesada e espessa porta fechava-se. O padrinho apagava a branca luz do tecto. Era a obscuridade absoluta. A sensação de estar envolvido numa qualquer aventura, numa conspiração era verdadeiramente fabulosa, única. Sentia que ia ser iniciado pelos deuses num mistério, o qual me ia ser revelado. Na escuridão ouvia a respiração do padrinho, sentia a sua presença e procurava adivinhar-lhe os gestos. Gestos de quem conhecia bem o espaço que trilhava e se movia no escuro como se a luz estivesse acesa. Então acendia-se a luz vermelha, veladíssima, a única permitida, e só de vez em quando, por curtos períodos, pelo material fotográfico. Depois de tudo preparado e posicionado, fazia-se de novo escuro. Na escuridão, ouvia-o abrir a caixa do papel, tirar uma folha e colocá-la com perícia no ampliador. A luz deste acendia-se projectando o negativo no papel através de um cone de luz e eu espreitava, fascinado, olhando com ávida curiosidade aquelas estranhas manchas cinzentas, umas claras e outras escuras. Manchas que tornavam brancos os pretos das áfricas e dos brancos fazia negros! Como se a fotografia quisesse tratar todos os homens da mesma maneira, talvez com o mesmo desprezo. Manchas das quais nasceria a fotografia. Via o padrinho, com as mãos, manipular o cone de luz com gestos de mágico, para compensar zonas mais ou menos queimadas. A folha era colocada na tina com o banho de revelador e, pouco depois, como por magia, a imagem aparecia a pouco e pouco.

Era ver-me, debruçado sobre a tina com o nariz quase mergulhado lá dentro, vendo a superfície do papel a alterar-se, escurecendo, manchando-se de óxido de prata, objectos, corpos, rostos formando-se, como fantasmas saindo do nada. Mais tarde aprendi por que processos químicos aquele fenómeno era possível e eu próprio fiz trabalho fotográfico em laboratório como amador mas naquele tempo, aquilo tinha o sabor da magia, a atracção do inexplicável. Naquele momento, o padrinho era um mago, um prestidigitador. E eu era o público daquele espectáculo fantástico. Público privilegiado e maravilhado. Depois a fotografia passava ainda por fixador e era lavada sendo em seguida pendurada a secar para, ainda húmida, ir para a esmaltadeira. E eu ia dar outra volta, correr todos os corredores, entrar em todas as salas, assomar a todas as janelas, percorrer todos os cantos, procurar em todos os esconsos, saboreando o mais possível a minha aventura naquele castelo mágico. Era assim ir a casa da tia!

José António
Oeiras, 12 OUT 2002

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11 comentários:

Rui Freitas disse...

Obrigado, Amigo Zé, pela brilhante e mágica descrição que me deste o prazer de ler.
Recordei a minha própria juventude, quando, na câmara escura (improvisada numa velha despensa), revelava os meus negativos e os passava a papel... com o mesmo cuidado que "copiaste" ao teu padrinho/tio!
Recordaste-me, também, os primeiros textos que revi no Diário de Notícias do Funchal (nem sei se ainda existe o cargo de Revisor), nos idos de 75/79, impressos em papel pardacento por letras de chumbo. Sim, de chumbo fundido em Linotypes. Alguém se lembra do que isso era? Afinal, passaram SÓ 30 anos...
Obrigado, Zé... e um forte abraço.

Unknown disse...

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Caro Amigo Rui, eu é que agradeço a visita e fico satisfeito em saber que a minha humilde prosa teve esse condão de despertar tão boas recordações.

Revisor... há mas mudou de nome... :)
Tenho uma amiga que o é e agora chama-se pomposamente copy-desk.
Ah, e já não queimam as pestanas em papel, agora cegam no écran do computador.
Só o que é mau é que não muda neste país...

Não sou nenhum matusalém mas recordo-me do chumbo, sim senhor!
Uma das minhas primeiras colaborações na minha carreira profissional foi com uma pequena tipografia em Cascais onde, apesar de já haver uma máquina de off-set, para certos trabalhos compunha-se a chumbo, e nunca hei-de esquecer a destreza e velocidade do compositor, a ler o original manuscrito, a tirar os tipos das gavetas (caixas) e a juntá-los na peça cujo nome esqueci (será prelo?).

Eh... já passaram 30 anos! :)))

Ao que vejo temos muito de que falar...

Forte Abraço,

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Sara MM disse...

Que texto maravilhoso!
E que aventuras fotografico-mágicas empolgantes!
E que belas recordações!


(não sabia que o Palácio tb tinha esse nome...)

Bjss

Unknown disse...

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Olá Sara,
Fico contente por teres gostado!

O Palácio TINHA... dizes bem... TINHA...
Porque já não existe, e é pena pois tinha uma bela fachada.
Acho que a minha mãe tem para lá uma foto em que se vê o Palácio.
Vou pedir-lha, para a pôr aqui.

Bjs,

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Anónimo disse...

obrigado pelas boas recordações...
xuxayte

Unknown disse...

Olá mano novo !

Tenho a certeza que este texto, que não conhecias, te trouxe tambén boas recordações da 'fotografia do padrinho'. :)

Bjs,

Alexa disse...

Caro José Baptista: muito obrigada pela sua visita ao "Retalhos de Bem-Fica" e por me ter dado a possibilidade de conhecer este seu magnífico texto de memórias!

Infelizmente, já não cheguei a conhecer a Foto Nice, pois só nasci em 1976.
Mas, terei todo o gosto em publicar este seu texto (com referência à sua autoria e blog) no nosso "Retalhos de Bem-Fica".

Sinta-se à vontade para voltar ao nosso blog comunitário e partilhar tudo aquilo que considerar importante sobre a nossa freguesia.

Abraço amigo

Unknown disse...

Cara Alexa,

Eu é que lhe agradeço ter aceite o convite para ler esta saudosa memória.

Será uma honra para mim a Alexa publicar o meu texto no seu blog, e partilhá-lo com os seus leitores.

Vou certamente voltar muitas vezes ao "Retalhos de Bem-Fica" e vou linkar aqui e noutros blogs meus.

Abraço,

Anónimo disse...

É verdade, também tenho fotografias tiradas na Foto Nice, pelo Sr. Virgílio! Bons Tempos!

Teresa C.

Unknown disse...

Cara Teresa C.,

Bons tempos, sim senhora!
Fotos tiradas lá, todos na família temos. Claro, o padrinho Virgílio fotografava a família toda, p.ex. se alguém necessitava de passes para o B.I., ou outra coisa qualquer.

O que eu nunca vi em casa dos meus familiares mais próximos foi fotografias do prédio onde funcionava a Foto Nice. Daí a enorme alegria que senti quando encontrei a que em boa hora o "Retalhos de Bem-Fica" publicou.

Grato pela visita,
Abraço,

Anónimo disse...

Boa noite a todos. Boa noite José. À procura de informação sobre a fotografia Nice, deparei com o teu texto e fiquei muito sensibilizada pois o Sr. Vergílio também era meu tio. Aliás, para ser mais precisa era tio do meu pai.
Apesar de 10 anos mais nova (creio eu) também me lembro do fascínio que era ir àquela casa, subir as tais escadas que rangiam e a campainha que tocava quando abríamos a porta de mola que era de madeira e tinha um grande vidro martelado onde estava escrito (se a memória não me falha) a vermelho e dourado "fotografia Nice". O meu grande fascínio era o baú com os fatos de carnaval que serviam para a criançada tirar fotografias na altura do Carnaval. Foram vários os carnavais em que o meu tio me emprestou algum desses trajes que me permitiu andar mascarada por esses dias.
Eu morava na travessa por detrás da fotografia