quinta-feira, outubro 28, 2004

adeus choupo que foste vítima de mentecaptos


1.

Hoje o acordar foi triste.

Eram talvez umas 09:45 quando saí do quarto e entrei no escritório.
Olhei pela janela, em parte para ver como estava o tempo, ultimamente manhoso, mas também para deixar os meus olhos passearem-se pela copa do magnífico e imponente choupo, visível a uns 5 ou 6 metros da minha varanda.

Um pormenor de imediato captou a minha atenção: um preto empoleirado num ramo, de serrote em punho, serrava furiosamente algumas grossas ramadas à sua volta.
No entorpecimento matinal, ocorreu-me ingenuamente que a Câmara, receosa de potenciais acidentes, ou avisada da iminência de algum, tivesse decidido podar algumas ramadas de natureza mais instável.

Achei bem.
Há que zelar pela segurança de pessoas e bens.
Há que acautelar, antes, para não ter depois que 'reparar o irreparável'.

Sentei-me na cadeira e concentrei-me no ecrã do computador.
Havia muito trabalho para fazer.
Muitas ilustrações para desenhar.
Assim se passou talvez uma ou duas horas.
Concentrado, como é meu hábito, desligado de tudo o que me rodeava, não assisti, felizmente, ao crime hediondo e inqualificável que estava a ser perpetrado.

Fui para ele despertado pelo grito de horror de minha esposa, que entretanto entrara no escritório:
— Destruíram o nosso choupo!
Olhei para a janela e fiquei horrorizado, completamente estarrecido.
Da frondosa e imensa copa, refúgio de centenas de pardais e outra passarada, já nada existia.

Via-se apenas a ponta serrada, partida, triste e ferida do tronco, projectando-se deste os cepos selvaticamente rachados do que antes foram grossos ramos e compridas ramadas, que sustentavam como braços de gigante aquela copa imensa que murmurava no silêncio da noite, que dançava na brisa fresca, que tantas vezes me embalara em noites de insónia.

É indescritível, é inefável, o som do murmúrio daqueles milhares de folhinhas a roçagarem umas nas outras no silêncio lunar.
Não tenho palavras para descrever o profundo, sublime, sentimento de prazer provocado por essa sinfonia, que era o ciciar das folhas acompanhado pelo pipilar cúmplice da passarada.
Quantas vezes, à noite na cama, me deliciei a ouvir esse autêntico concerto de jazz consubstanciado no swing das vibrações do ar, que vindas do choupo me entravam pelo quarto dentro e se espraiavam por cima da cama como um suave véu de seda macia, que me adormecia na convicção da transcendência.


2.

Quando saí de casa para ir almoçar, tive oportunidade de falar com algumas pessoas, sendo que a primeira foi uma engenheira florestal da Câmara Municipal de Oeiras, assim se identificou, que tinha sido alertada por um munícipe e estava a procurar averiguar de quem partira a ideia daquela barbárie.
Pouco tempo passado, disse-me, sem o garantir, que a acção parecia ter partido da própria Câmara, por razão de um qualquer projecto de acesso pedonal com rampa para deficientes, a construir naquele mesmo local.

É de louvar a preocupação com a melhoria das acessibilidades, mas quem conhece o local não acredita de modo algum na impossibilidade de desenhar uma solução capaz de poupar a vida a tal árvore, cujas características a tornavam indubitavelmente Património Natural do Concelho.

Uma outra senhora com que falei referiu-me que morava ali há cerca de 30 anos e lembrava-se de sempre ter visto ali a árvore.
Um senhor disse-me da dificuldade de uma mãe ou avô, não recordo bem, que passava, explicar à criancinha com quem ia e que a questionara, o que estava a acontecer e porque razão aqueles homens estavam a fazer aquilo à árvore.
Mais duas ou três pessoas com quem também falei mostraram-se escandalizadas com o acontecido.
O léxico utilizado pelas pessoas contemplava, em regra: crime, barbaridade, selvajaria, hediondo, etc.
O sentimento geral dos munícipes pareceu-me de revolta e indignação.

Para dar uma ideia da dimensão da citada árvore refiro que moro num 2.º andar e a minha varanda ficava abaixo do meio da copa.
Tanto quanto recordo, e tenho ainda documentado com 2 fotografias, a árvore atingia no seu ponto mais alto quase o 5.º andar do meu prédio.
Refiro ainda que o ponto de implantação da árvore não era ao nível do prédio, mas mais abaixo, cerca de uns 2,5 m., pois daquele lado existe um pequeno talude.
Isto tudo somado dava ao choupo uma altura estimada de cerca de 15 a 20 m.


3.

Onde estava um choupo, que nos dava qualidade de vida, agora vamos ter ferro e cimento...

Onde estava um choupo cuja copa nos dava privacidade, agora temos as janelas dos vizinhos...

Onde estava um choupo que era uma barreira natural contra o vento agora vamos ter a ventania...

Onde estava um choupo que era um 'planeta' carregado de vida vegetal e animal, numa miríade de microorganismos e de pequenos seres vivos que nele tinham o seu habitat, o seu ecossistema, ou parte dele, e que com a árvore inter-agiam num processo vital de simbioses e cadeias alimentares multifacetadas e riquíssimas, agora vamos ter...


4.

Enquanto escrevo isto, sentado frente ao computador, no mesmo sítio de sempre, olho para a direita através da janela e sinto um aperto na garganta. Há algo que me estrangula e falta-me o ar!

p.s.: Este texto encontra-se também publicado no meu blog Rememorar Oeiras. Pela relevância do acontecido achei por bem publicá-lo nos dois locais.

domingo, outubro 24, 2004

coleccionava singularidades


Coleccionava singularidades.
Começara ainda miúdo com um pequeno fóssil de turritela (1) que encontrara numa escarpa rochosa da praia onde passava as quentes e doces férias de verão.
Apanhou-o do chão com os seus pequenos dedos, rolou-o e observou-o com atenção fascinada. Uma pequena rosca de rocha dura. Cem milhões de anos na ponta dos seus dedos juvenis. Um frémito percorreu o seu corpo. Um tiranossaurus rex rugiu ao longe. Apertou a pequena rocha fusiforme na palma da mão e forçou as pernas a moverem-se. Era difícil mover os pés, mergulhados no lodo cretáceo. Mas conseguiu. E caminhou seguro sobre a areia quente da praia, sob o sol escaldante e inclemente, até ao chapéu de sol onde a família estava abancada.
Quando as férias terminaram levou para casa aquele objecto precioso, aquele tesouro singular, e guardou-o bem guardado no seu quarto. O tempo passou e regularmente pegava no objecto e observava-o com paixão e fascínio, pensando "onde este estava há mais e vou recolhê-los!"
E recolheu. Mais turritelas. Não só naquele local mas em muitos outros onde as encontrava. Não só turritelas mas tudo quanto fosse fóssil, pedra curiosa, cristal, pedaço de madeira, objecto curioso, singularidade...
Por todo o lado, em casa, no sotão, na arrecadação, nas gavetas, sobre os móveis, em caixas velhas de cartão, aqui e ali, havia objectos da sua colecção.
Mas sentia-a sempre incompleta. Não conseguia considerá-la terminada, completa e finita. Sentia que 'cabia sempre mais um'. Havia sempre mais um objecto a acrescentar. Aparecia. Encontrava-o. Achava-o. Não o podia desperdiçar e deixar a colecção incompleta! Assim, juntava, juntava, juntava...

O miúdo tinha crescido. Fizera-se homem adulto. E a colecção crescera desmesuradamente. A maioria dos objectos, para os outros, era apenas 'tralha'. Não tinham valor nenhum. Quanto muito haveria um ou outro mais 'giro' ou 'curioso'. Apenas isso. Mas para ele era bem diferente. Eram valiosíssimos. Eram a Sua Colecção! E valiam pela singularidade. Não se conseguia desfazer deles, de nenhum deles. Não conseguia sequer imaginar-se sem eles.
Sonhara um dia organizá-los numa espécie de mini-museu caseiro. Organizados e dispostos em belas prateleiras de vidro, iluminados com arte e com pequenas etiquetas identificadoras. Mas via cada vez mais longínquo esse sonho. Razões económicas, já se vê. O que não o impedia de continuar a coleccionar. A colecção infinita.
Por vezes olhava um ou outro objecto da sua colecção, que descobria ao abrir uma gaveta ou a porta de um móvel. Uma velha lupa de vidro da qual sobrara o aro e a lente e desaparecera a pega ou um pequeno canivete suiço ao qual faltava o palito, a sua primeira máquina fotográfica para a qual já não havia rolos, um dente de cavalo achado na praia e metido numa caixinha plástica com um algodão no fundo, a ocular da máquina fotográfica que se avariara, desmontara e 'lixara', o passe de estudante da CP de Oeiras a Cascais com o velho bilhete mensal de 47$50, uma lente de óculos com função de godé suja de gouache, uma lanterna que há anos não funcionava, um isqueiro a gasolina trucidado por um carro e todo amachucado, uma pequena válvula de combustível de um avião T7, parafusos, porcas, pedras, conchas, pedaços disto, pedaços daquilo, pedaços de tudo e pedaços de nada, porções, completudes, singularidades..., e pensava "para que quero eu esta merda?" Mas não conseguia deitar o objecto fora. Sentia-o como único no cosmos. Podia haver muitos parecidos, mas nenhum rigorosamente igual. O que o tornava singular. E lhe dava um valor inestimável. E lá voltava o objecto para a gaveta ou caixa de onde tinha saído.
Chegou a pensar em organizar os objectos em colecções temáticas: moedas, selos, postais, fósseis, fotografias, rochas, búzios e conchas, desenhos, navalhas, livros, miniaturas, isqueiros, óculos, canetas... Uma Colecção de Colecções! Mas não funcionou. Apareciam sempre novos objectos a abrir novas rubricas e outros que 'voavam' de rubrica em rubrica. A carteira profissional da avó ou a certidão de nascimento do pai entravam na rubrica 'documentos', na rubrica 'história', na 'família' ou em 'testemunhos do período fascista'? Que confusão!
Assim continuou, como sempre. A juntar. Juntando, juntando, juntando...

Coleccionava singularidades.

(1) - TURRITELLA - PALEONT. Foi Lamarck quem, pela 1.ª vez, em 1799, designou este gén. de animais marinhos por este nome. A concha é cónica, alongada, com muitas espiras bem individualizadas; ornamentação formada por cordões longitudinais, tornando-se granulosa nos ambientes salobres; durante o crescimento de cada indivíduo os caracteres ornamentais modificam-se; este facto permite reconstruir as afinidades inter-específicas. Abertura holóstoma, oval ou arredondada. Os animais do gén. T. apareceram no Cretácico, tiveram a maior expansão no Terciário e chegaram à actualidade, sendo vulgares nas praias portuguesas. Os fósseis são extraordinariamente abundantes em certos sedimentos miocénicos de Portugal, apresentando formas muito grandes.
in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Verbo, V. 18, p.277

2001, Oeiras

domingo, outubro 17, 2004

ocaso


nota: esta estória foi escrita em 2002 e é um bocadinho grande, mas tenho um especial carinho por ela (os meus amigos vão perceber porquê; basta recuarem a 1995...), e decidi deixá-la aqui, sem a alterar excepto num ou outro acento que 'fugiu'.


Eram talvez sete horas da manhã. O trânsito estava uma merda como de costume!
O previsível dia de calor enchia a rua de carros repletos de marmanjada que se dirigia que nem carneiros para as praias das redondezas, para além dos desgraçados que iam trabalhar, porque não estavam de férias. Toneladas de carne gorda e balofa, mal passada, a caminho da Caparica e da Fonte da Telha. A ponte começava a encher. Os acessos já o estavam. Mas não era para aí que eu me dirigia apesar de seguir na mesma direcção. Simplesmente, via agora, tomara uma decisão errada em pretender ir primeiro a Lisboa. O volks, no meio da multidão, gemia que nem uma carroça. Mas mantinha-se impecável ou não fosse um volks. Eu é que começava a ferver e não era da temperatura que subia rapidamente. Só havia uma coisa a fazer. Saí da autoestrada na primeira saída que apareceu, para vias mais calmas e desimpedidas. Fiz a inversão de marcha e voltei à autoestrada, desta feita em sentido contrário. Claro que quase não existia movimento. O volks cantou contente e acelerou. Sentia-se valente com certeza. Estava eufórico. Tive que o agarrar com força para que não me escapasse das mãos.

Acendi um éssegê e colocando o cotovelo esquerdo na janela aberta dei uma longa baforada espreguiçando o corpo, dentro do possível a quem vai a conduzir. Não demorei a chegar onde queria. Procurei estacionamento, o que não foi muito difícil. Eu sabia onde estavam os carros! Desliguei o motor, fechei a janela. Saí do volks, fechei a porta e tranquei-a. Dirigi-me ao enorme edifício de vidro e metal e cruzei as portas de vidro, que se abriram à minha aproximação. Com um sussurro, fecharam-se nas minhas costas, enquanto eu me dirigia ao elevador. Carreguei no botão de chamada. Para subir. Segura na mão direita levava a enorme pasta negra dentro da qual, bem protegida, seguia a maqueta para o cartaz polícromo, que tanto trabalho dera a executar. E a conceber. Esperava uma aprovação sem problemas.

O elevador parou com um plim e a porta abriu-se à minha frente. Afastei-me pois de dentro dele saiu um cão todo lampeiro. Dei-lhe os bons-dias quando passou pela minha frente. Armou-se em importante e não respondeu. Um cão de raça com aspecto de bem tratado. Não era nenhum rafeiro vadio. Tinha uma dimensão média. Dava-me pelo meio da coxa. Não sou muito alto. Bem, nem muito nem pouco. Também sou médio. O cão era castanho, com o pêlo impecavelmente cuidado. Saiu do elevador rapidamente em direcção à entrada principal. O seu corpo accionou o dispositivo automático e as portas abriram-se à sua passagem. Entrei no elevador observando a minha imagem reflectir-se nos inevitáveis espelhos. A porta fechou-se atrás de mim. Pressionei a tecla do andar pretendido e aguardei. O elevador começou o seu movimento rápida e suavemente. Com um pequeno solavanco e um plim imobilizou-se. Empurrei a porta e saí, sempre segurando a minha pasta negra.

O vento frio fez-me estremecer. Era um daqueles ventos gelados de inverno que parecem querer cortar-nos as orelhas. A luz em que eu estava mergulhado fazia também recordar o mais rigoroso dos invernos. Olhei para trás. O elevador tinha desaparecido. No lugar onde se deveria ver a porta nem parede havia. Olhei em redor. O compartimento, de três paredes, não era muito grande. As paredes, de madeira, faziam lembrar o interior de uma barraca tipo T0 da Buraca. Estava vazio. Vazio, vazio, não. A um canto divisava-se, enrolado sobre si mesmo, um gato cinzento mal encarado à brava. Estava sujíssimo e carregado de marcas de muitas batalhas. Movi-me, para passar o peso de uma perna para a outra e os meus sapatos fizeram barulho, rilhando a gravilha no piso de cimento cinzento, rival das paredes em sujidade. O gato levantou a cabeça e olhou para mim. No lugar do olho esquerdo, um enorme buraco preto, sujo de sangue ressequido, fitava-me. Miou. Levantou-se. Espreguiçou-se. Miou. Deitou-se. Enroscou-se de novo e fechou o único olho. Provavelmente adormeceu. Virei-lhe as costas. Continuava a segurar a minha pastosa.

À minha frente, um comprido cais de madeira avançava pelo mar dentro. Não lhe via o fim. Perdia-se no nevoeiro. Segurei com mais força a alça da pasta. Um pouco aquém do cais e a um dos lados um velho, vestido com um fato de palhaço e uma horrível gravata bege, estava sentado numa cadeira de praia. Uma cadeira de lona queimada pelo sol, sobre um quadrado de alcatifa azul-escura. Dirigi-me a ele com cuidado, procurando não pisar nenhum dos lagartos verdes que se espreguiçavam na alcatifa. Cumprimentámo-nos. Abri a pasta e tirei para fora o trabalho. Claro que o aprovou sem qualquer discussão ou hesitação. Despedimo-nos e afastei-me dele.

Avancei para o cais. As travessas de madeira, húmidas, envelhecidas pelo tempo, gemiam sob os meus pés a cada passo que dava. Passos lentos mas seguros. Embrenhei-me na neblina. Olhei ao meu redor. Além do branco daquele manto que me envolvia nada mais estava ao meu alcance. Atingi o fim do cais. Terminava numa parede de tijolo vermelho, assim como o mar. Este, ondulante beijava suavemente a parede, num lascivo sobe e desce. Olhei em frente. Exactamente onde o pontal de madeira penetrava a parede, uma porta de elevador. Carreguei o botão de chamada, que se iluminou de imediato. Esperei pouco.

De novo com um plim, o elevador surgiu. Abri a porta e entrei. Os mesmos espelhos. Pressionei o botão correspondente ao rés-do-chão e o elevador arrancou, num sussurro. Olhei para a minha mão. Firmemente segurava a pasta. Suavemente, o elevador desacelerou e imobilizou-se na saída. Abri a porta e saí. Tive de me desviar pois o cão castanho dirigia-se ao elevador no qual entrou. Deu-me as boas-tardes ao passar por mim. Armei em importante e não lhe respondi. Ouvi o elevador arrancar. Dirigi-me à saída do prédio. As portas de vidro abriram-se à minha passagem. O calor tórrido da rua envolveu-me. Soprei. O meu volks estava no mesmo sítio. Caminhei até ele, abri a porta e atirei a pasta para cima do banco traseiro. Entrei. Baixei o vidro da janela. Coloquei a chave na ignição e pus o motor a trabalhar.

Arranquei. Tomei o caminho da marginal. Eram talvez cinco da tarde e eu sem almoçar. Dirigi-me à esplanada do costume, junto à praia. Lá sempre poderia comer uma sandes ou um cachorro acompanhado de uma cola, porque almoçar a esta hora já não valia a pena.
Estacionei o volks e fui comer o tal cachorro com vista para o mar. Eram quatro da manhã quando fui para casa.

quinta-feira, outubro 14, 2004

mosca


A sala estava mergulhada numa semi-obscuridade outonal de fim de tarde, a escorrer líquida pelas paredes rugosas do apartamento suburbano.
Era um daqueles dias de Outubro em que se começa a sentir o cheiro da chuva e o odor do vento nas folhas tropeçadas da berma da estrada.
Tinha-se abandonado nas almofadas do sofá, como um boneco de trapos displicente.
O cachorro dormitava ao seu lado, num claro sinal abusador de bicho que se sabe protegido e apaparicado.
Estava de tal forma distraído, de olhos pregados no reallity-show, telecomando adormecido na mão, que não se apercebeu de nada.

A mosquita aproximou-se da sua cabeça, volteou duas ou três vezes no ar e rapidamente entrou-lhe por um ouvido. Casualmente o esquerdo. Para ela era indiferente.
Deu umas quantas voltas esvoaçando na escuridão opressiva do interior do crâneo, batendo assustada contra as duras paredes deste, e saiu pelo outro ouvido, tocando ligeiramente com a ponta da asa num naco de cerume e afastando-se rapidamente na direcção da cozinha e do apelativo caixote do lixo.

O cachorro emitiu um pequeno gemido, sinal de que sonhava.

terça-feira, outubro 12, 2004

comentando um... cu-mentário


O comentário citado está no post abaixo deste e que tem por título "sebo e choco".

cito:
Meu Deus, o neo-realismo regressou a este pais miserável? Dei uma vista de olhos pelo seu blogue, que em termos gerais achei pomposo, petulante a banal. Não há nada que me aborreça mais do que os lugares-comuns de um filósofo suburbano. Quanto a esta história, que posso dizer? Se lhe juntar mais duzentas páginas, talvez seja publicado pela Oficina do Livro, ao lado da Rebelo Pinto e de outro desconhecido tão ilustre como você.

Os meus relutantes cumprimentos,

Vermeer33

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Posted by madre to caracol carolas at 10/11/2004 07:05:52 PM


Pois...
Vermeer, pela sua conversa, duvido que volte cá e que leia isto, mas:

'Madre' !?
Será a 'madre' Teresa? Não acredito. O coração dela era muito mais infinito e tolerante que o seu.
E menos 'fascizóide', imagine!

O seu discurso soa-me a conversa de fêmea comuna ressabiada com foice a mais e martelo a menos ou então de paneleiro não assumido (talvez você seja psiquiatra ou ministro). Desculpe s'ofendi...

Pois é, meu caro Vermeer33 (quem quer que seja, que se esconde num cobarde anonimato).
Não me surpreende o regresso do neo-realismo a este país miserável (eu gosto mais de dizer 'país de merda'). É em países assim que ele busca a matéria-prima de que se alimenta. E Portugal é um cadinho de eleição para explorar. Afinal, é um país de 'imbecis governado por incompetentes".
Agora, eu ser neo-realista!? Ah, ah, ah! Não percebeu nada, seu estúpido! (sem ofensa.)

No resto, não me revejo na crítica. Acho-a espúria. Apenas acho que se está aborrecido, tem bom remédio: FUCK YOU, HASS HOLE!

Quanto à sua sugestão de publicação, até que me parece interessante (agradeço). Ainda não tinha pensado nisso. Era uma forma de resolver os meus problemas económicos. Se tiver o contacto, mande-mo, S.F.F. Vê-se por aí tanta gente a ganhar dinheiro escrevendo as maiores merdas, porque não hei-de eu aproveitar a onda? Eu sei porquê. Porque sou estúpido.

Sem relutância alguma, melhores cumprimentos,

josé antónio (ne-realista, pomposo, petulante, banal e filósofo suburbano — according to Vermeer33.)

sábado, outubro 09, 2004

sebo e choco


Tentou por todos os meios convencê-lo. Afinal estavam juntos já há tanto tempo, cerca de duas semanas, que até parecia mal não o fazerem. Todos os vizinhos das barracas à volta o faziam, que as vizinhas bem lhe contavam. Contavam-lhe e perguntavam-lhe como era com ela e o gajo. Começou até a sentir vergonha!

Insinuou-se de todas as formas e feitios. Cozinhou-lhe os petiscos que ele adorava para o seduzir, mas não houve meio. Cozinhou-lhe, é uma maneira de dizer. Mandava os putos roubarem latas de polvo de caldeirada ou atum de escabeche no Pingo Doce. Afinal, é para isso que uma gaja tem filhos, para sustentarem a família.
Mesmo à noite, após a janta, depois de ele já ter bebido duas garrafas de vinho, mesmo quando ele demonstrava uma forte apetência e excitação, mesmo quando consumavam o acto, nada.

Chegou até a lavar-se. Tirou as badalhocas do cu, pensava que fosse por isso. Gastou quase meia barra de sabão-macaco para se esfregar, mas não. Nem assim o convenceu.
E ela sabia que ele tinha razão.

Porque, depois da lavagem, passou a mão e sentiu a razão da queixa dele para se recusar a praticá-lo. Ela tinha efectivamente aquele típico cheiro a sebo retardado misturado com cheiro a choco frito entranhado nas virilhas.
Desistiu. E um dia morreu. Sem nunca ter conhecido o prazer do cunnilingus!

Talvez por nunca se ter cruzado com um tipo, que não conheço, mas de quem um amigo meu me falava há dias...

terça-feira, outubro 05, 2004

ciao bambino


Soube hoje pelos noticiários, como tanta gente, que o Carlos Carvalhas vai deixar o cargo de Secretário-Geral do PCP.

Não é nada que não se esperasse já. A contestação era grande. E não só dos 'corajosos-expulsos' que tiveram a 'ousadia' de apresentar uma moção a pedir um congresso extraordinário. Sentia-se essa desilusão e contestação no discurso do comum militante, simpatizante, apoiante, ou mero amigo do partido.

Apenas escrevo para dizer que vejo uma grande maioria, comovida mas optimista, a acenar os lenços brancos, ao mesmo tempo que entoa "ciao, ciao bambino"... e uma pequeníssima minoria fungosa, de tacha arreganhada, a cantar "tenho uma lágrima no canto do olho, tenho uma lágrima no canto do olho"...

LIVRAI-VOS DE CUSPIR CONTRA O VENTO (ZARATUSTRA)

segunda-feira, outubro 04, 2004

amigos, amigos...


Aquele gajo, ou gaja?, dá-me vómitos.

Se tivesse um amigo assim enchia-lhe aquela tromba paneleira de porrada. Pegava numa cachaporra e arrebentava-lhe com os cornos!

Deve ser por isto que ele não é, nem nunca será, meu amigo... AINDA BEM!!!

a hora


Boas ou más, há horas para tudo e, para cada coisa, a sua hora. E a hora sempre chega.

Sabas tião estava concentrado no seu trabalhinho. De tal forma, que nem deu pelo passar das horas e como a tarde ia avançada. Olhava fixamente o ecrã do computador onde preparava uma prosa para sair, por algum lado, no dia seguinte. Os seus olhos pareciam duas esferas globulares de gelo duro, imóveis e brilhantes. As suas mãos sapudas corriam o teclado velozmente, como ratos num celeiro cheio de sacos de cereal.
Ao seu lado, as suas duas navalheiras de estimação dançavam uma versão pós-moderna d'o lago dos cisnes, dentro do enorme aquário de acrílico rosa-pálido. Enquanto isso, sentada numa espreguiçadeira a um canto, uma gigantesca carocha argentina mulata, tanguista, bordava a ponto-cruz uma bela reprodução do busto da república, checa. E a tarde continuava a avançar e sabas tião a tricotar.
Repentinamente, despertou daquela espécie de hipnose fixista. Sentiu algo de indefinido que o fez parar e encostar-se para trás na cadeira e retirar as mãos do teclado. Era como uma febre, mas sem temperatura. Ou como umas cócegas, mas sem comichão. Olhou o tecto, sujo de cagadelas de mosca, do vinagre, na esperança de conseguir perceber o que o tinha acordado da sua importantemente inútil tarefa. Procurou sentir o seu próprio corpo. Não, não sentia nada de estranho, nenhuma dor nem nada assim. Mergulhou na memória. Não, nada emergia, nenhuma lembrança, nada programado para fazer. Que raio lhe teria acontecido?
Então, um ataque de tremuras acometeu-o, e começou a tremer violenta e descontroladamente como um picapau epiléptico. Deu um grito terrível que assustou as passageiras do autocarro, que saltaram pelas janelas, levantou-se num rápido pulo, e desatou a correr desenfreadamente, dando enormes saltos como um gafanhoto histérico. Entrou desabrido pelo snack-bar adentro, parou ao balcão, respirou fundo três vezes, e pediu... pediu uma bola de berlim com creme, que devorou em duas dentadas.

Tinha chegado a hora da bola de berlim com creme!