quarta-feira, dezembro 03, 2003

sentado na muralha

Estava sentado na muralha da praia vazia. O verão era uma ambição distante. Soprava uma brisa afiada e o céu estava encoberto mas não chovia. Olhava o mar cinzento enquanto fumava um cigarro. Lentamente, levava-o aos lábios e sorvia o fumo quente e agridoce como se áquele nunca mais nenhum outro se seguisse. Olhou a traineira multicolor que vogava próximo, balouçando no seu monótono tú-tú-tú-tú. Vinha cheia de pescado, a julgar pela grande nuvem grisalha que a seguia a curta distância, como um rasto no céu. Ouvia o gritar desesperado da nuvem faminta. Lembrou-se do Fernão Capelo. Por onde andaria ele?
Deu uma última fumaça e atirou a beata para a areia, metro e meio mais abaixo. Viu-a descrever um arco no ar como uma estrela cadente. Seguiu-a com o olhar. Viu-a quando tocou a areia e o murrão explodiu em faúlhitas e, num estertor de morte, lentamente, se apagou.
Levantou os olhos. Procurou a traineira. Afastava-se, cada vez mais longe. As vagas imensas faziam-na desaparecer de vez em quando. Como se se afogasse ciclicamente mil vezes. E outras mil vezes se salvasse.

sábado, novembro 29, 2003

taílândia, a terra do 'tá aí.

Sabia que no dia anterior, antes de ir para casa, tinha deixado o pequeno agrafador amarelo no seu poiso habitual: sobre o tampo da secretária, do lado esquerdo do monitor, encostado paralelamente à pequena régua 'moinho' de trinta centímetros de plástico azul.
Olhou com atenção redobrada o espaço à sua frente. Tudo estava onde devia estar, excepto o pequeno agrafador amarelo. Este tinha-se evaporado!
Como pessoa de bom senso que se considerava ainda pôs a hipótese de o ter guardado na gaveta, o que seria incomum pois gostava de o ter sempre à mão visto que o utilizava imenso, e tê-lo esquecido. Assim, abriu a gaveta. Apenas para confirmar que também não estava dentro desta.
Só discortinava uma hipótese: que na sua ausência o seu 'vizinho' do lado o tivesse levado e não o tivesse reposto no sítio. Voltou-se na cadeira e fez-lhe a necessária pergunta. A resposta foi o típico "'tá aí!". Ainda esteve para perguntar "aí, onde?" mas lembrou-se do poeta que preferia escorregar nos becos lamacentos...
E aquela terra, aquela taílândia, não era a sua terra. Levantou-se e foi até à secretária do outro, sobre a qual, debaixo duns papéis, encontrou o pequeno agrafador amarelo.

segunda-feira, novembro 24, 2003

uma estória de Natal

Empurraram a figura multicolor de narizinho vermelho e rosto pintado ao longo do corredor cinzento e húmido até à porta de ferro enferrujada, frente à qual se imobilizaram com alguma brusquidão fascizóide.
Um dos dois guardas abriu o ferrolho e empurrou a porta para dentro com força exagerada, o que a fez chiar e bater na parede e ribombar.
O outro guarda empurrou com o comprido bastão a figura multicolor de narizinho vermelho e rosto pintado para dentro do cubículo escuro com violência.
A figura multicolor de narizinho vermelho e rosto pintado tropeçou à entrada, cambaleou, escorregou numa poça de água oleosa e estatelou-se nas lajes de pedra escura como um boneco de trapos.
O guarda fechou a porta e trancou-a com o ferrolho violentamente.
Voltaram-se ambos síncronos para a saída do comprido corredor e sem uma palavra sequer iniciaram a marcha.
Dali a um ano seria novamente Natal.

domingo, novembro 23, 2003

um fausto basílio erudito

Muitas pessoas julgam os gatos pelas unhas... não vêem em profundidade!
Olho para o lado e vejo o meu Fausto Basílio a dormir (será que dorme?) em cima do meu Macintosh Performa 5200, de cujas colunas sai a exaltação de Deus na harmonia celestial do concerto de Brandenburgo n.º 1 bwv 1046 em fá maior de Johann Sebastian Bach.
E interrogo-me: o que vai no espírito do Basílio, tão sereno e concentrado na audição?
Certamente sente a presença de Deus. Aquele olhar não me engana. É o olhar profundo da transcendência! É o inconfundível olhar da inabalável Fé!
Nisi credideritis non intelligetis.