quarta-feira, novembro 30, 2005

solução dentária de um pobre


Há verdades insofismáveis. Esta é uma delas. A de que poucas são as pessoas que chegam ao fim da vida com os seus dentes naturais. A excepção, de um modo geral, aplica-se àqueles que por esta ou aquela razão morreram novos. E muitos, talvez nunca tenham entrado num consultório de dentista. Tinham carros demasiado velozes.
Para todos os outros, que somos nós, a realidade é outra. A nossa vida é um permanente atentar contra a saúde dos nossos dentes por via do tabaco, do álcool, das drogas, de utilizar os dentes para abrir embalagens teimosas, dos maus hábitos de higiene dentária, lambidelas das gengivas alheias e dos dentes cariados dos parceiros e parceiras, chupadelas de línguas, sexo oral, fellatio, cunilingus, beijos no ânus e etecéteras.
A verdade é que para a maioria de nós, mais cedo ou mais tarde, numa corriqueira consulta de dentista o homem da bata branca e alicate na mão nos agride com aquela afirmação "estes dentes estão muito beras, têm que ser tirados, depois pomos uma prótese dentária..."
E a calma e descontração com que os gajos dizem isto! Como se fosse um mecânico a dizer a um cliente que o carro precisa de mudar o filtro de óleo...
Enfim, alguns mais aventureiros, ou talvez resignados, aceitam a coisa à primeira (julgo que talvez por acharem que a vida é uma foda permanente e por isso...) Outros só se deixam convencer após um ou dois anos de dores de dentes, abcessos, terabites de analgésicos, antibióticos e anti-inflamatórios, uma estupidez auto-administrativa pseudo-medicinal porque o problema é mesmo e só: um dente na merda e a solução é extirpar o diabinho.

Então, marcada a consulta lá se apresenta o 'desgraçado' para a matança. Sim, matança. Um dente é uma coisa viva e, já agora, uma coisa viva que faz parte do nosso corpo, porra!
Não valerá a pena entrar agora em pormenores sórdido sobre a extracção dos dentes para não ferir susceptibilidades. Há pessoas muito sensíveis à visão do sangue e de agulhas, além de não suportarem o barulho da broca (brrrrrrrrrrrrr). A verdade é que um bom dentista, em pouco mais de 5 minutos, é capaz de extrair quase todos os 32 dentes a um ser humano. E se for alentejano ainda arranja tempo para ir dar uma rapidinha à Maria Papoila, que anda a pedi-las.
Quanto a prótese dentária (no vulgo conhecida por 'placa' ou 'dentadura') o arranca-dentes tem o hábito de propôr 3 preços, correspondentes, grosso modo, aos 3 estratos sociais. A 'perereca', a mais barata e de pior qualidade, que se racha ao meio três meses depois à primeira pratada de cozido à portuguesa ou entrecosto na brasa; uma assim-assim que se aguenta bem desde que se cole com polident, mas não é das melhores e passa a vida a querer fugir da boca, sobretudo quando a pessoa espirra, tosse, dá um peido ou faz força para defecar; e a totalmente de acrílico, feita à medida, super, a mais cara, à prova de raios gama e que dura até à próxima glaciação (como se um gajo estivesse preocupado com essa merda...)
O problema que sempre se coloca, e isto é um drama português que parece não ter fim, é estabelecer a melhor relação qualidade-preço. Claro que a priori qualquer um optaria pela placa de melhor qualidade, mesmo sendo a mais cara, se tivéssemos um serviço nacional-racional de saúde decente. Mas não temos. As placas saem-nos, literalmente, do bolso, para nos entrarem pela boca dentro.
Assim, as pessoas avaliam o que podem pagar e juntam-lhe a previsível comparticipação, quando esta é possível, perguntam ao homem da bata branca se podem pagar em duas vezes com cheques pré-datados e escolhem. Enfim, é como é.

Agora o meu drama.
Eu passei por esta merda!
Com uma diferença. Não havia comparticipação alguma e tudo tinha que ser pago do meu bolso. Que tinha um buraco no fundo maior que a c... da Cicciolina, pois!
Assim, pedi milhões de desculpas ao homem da bata branca, disse-lhe para me arrancar os dentes, mas que quanto à placa precisava de tempo para pensar, e que depois lhe diria alguma coisa.
Um dia de manhã lá fui à consulta e voltei com cinco dentes a menos. Não, não doeu mas é uma sensação estranha a porra da língua encostada à parte interior lisa e molhada do lábio inferior. Um gajo tem uma permanente sensação, que dura dias, de estar a fazer uma trombada!
Seja como for, eu tinha um problema para resolver. Precisava duma placa e as soluções propostas pelo homem da bata branca não se me afiguravam exequíveis. Eu andava mesmo muito desabonado.
Então, para pensar no assunto, um dia lembrei-me de ir passear até à cidade-luz. Não, não é Paris. Vocês têm a certeza que conhecem Lisboa?
Fui andando por ali às voltas a passear ao acaso até que me apercebi que estava no Campo de Sta. Clara e que era dia de feira. Pois, eu tinha, por coincidência, ido parar à Feira da Ladra, um dos mais importantes centros comerciais de Lisboa. Curioso, gosto de velharias, velhacarias, e também de apreciar as coisas roubadas, circulei pela feira descontraído. Mais ou menos. Ia particularmente atento ao bolso do blusão onde transportava a carteira e ao bolso dos jeans onde tinha o telemóvel. Nunca se sabe.

E então aconteceu. Ao acercar-me de uma banca, que não passava de um trapo cinzento emporcalhado estendido no chão com tralha em cima, vi uma impresssionante caixa de sapatos.
O que tem de impressionante uma caixa de sapatos? Nada. O que me impressionou naquela é que estava cheia de... dentaduras!
Montes e montes de dentaduras de todos os tamanhos e feitios. Havia algumas muito brancas, duas ou três mais amareladas, uma acastanhada com sinais de nicotina de fumador de cachimbo, outra com os incisivos magnificamente estalados e, impressionem-se com a riqueza do acervo, até uma com um pedacinho de um palito e restos de comida entre os dentes!
Perguntei ao homem o preço.
O homem, um magriço escanzelado com olhos de cão à espera de ser atropelado, e uma tromba que me lembrou vagamente um porco que vi numa feira de gado em Travanca, respondeu-me que "as simples custavam 5 € e as outras 7 €". Não percebi lá muito bem aquela distinção entre 'simples' e 'outras' mas pareceu-me que tinha a ver com o número de dentes. Ou com as ventas dos clientes...
Ora eu precisava de uma com 5 dentes para o maxilar inferior.
Disse isso ao rapaz-fronha-de-suíno e ele tentou impingir-me uma, suja de bâton rosa, de facto com cinco dentes, mas para o maxilar superior. Disse-lhe que não dava e ele, com argumentos que me lembraram os políticos em campanha eleitoral, tentou convencer-me a usá-la e que dava se a virasse de pernas para o ar! Fiquei fodido com o gajo! Estes cabrões andam a gamar para a droga e ainda me tentam ludibriar! Estive a ponto de explodir e mandar o gajo "bardacaca, bardachicha e bardaporra", para não o mandar "bardamerda", mas lembrei-me do governo e acalmei.
Respirei fundo, remexi e remexi na caixa com as placas, e acabei por finalmente escolher uma, após a ter posto na boca para ver se me servia. Não magoava e era a minha medida. Não tive coragem para perguntar ao moço-reco se tinha um espelho onde eu pudesse apreciar a composição do meu rosto com a placa. Temi que me mandasse bugiar e que já não me vendesse a placa, o que seria uma lástima.
Ainda me quis levar 7 € pela placa com o argumento de que a mesma tinha pertencido a um conhecido professor universitário, mas não acreditei na história e dissse-lhe isso mesmo, argumentando com ele que o sabor a fénico da placa demonstrava sem margem para dúvidas que a mesma pertencera a um fiscal das actividades económicas gay ou a um sacerdote pedófilo. O tipo aceitou o argumento, depois de olhar desconfiado em redor de nós, pediu desculpa, acho que "A do professor é esta mais amarelinha", e aceitou os 5 €.

Meti a dentadura na boca e voltei para casa, sorridente, sentindo-me um homem novo.

calcário anarca

terça-feira, novembro 29, 2005

¿HAS VISTO A MI PADRE?



Clique no título do post para aceder às petições da Amnistía Internacional ao Rei do Nepal e à guerrilha maoísta, ou escreva no browser: https://www.es.amnesty.org/ssl/nepal/interes/?origen=nepal

sábado, novembro 26, 2005

iluminações natalícias...


nota: este post está no meu blog Olharapo. Foi feito para ele mas... apeteceu-me colocá-lo também aqui!

Há vários dias que ela está ali e nunca a vi acesa a iluminar o local. A primeira coisa que me veio à cabeça quando a vi foi que alguém substituira uma lâmpada fluorescente ali por perto e não se dera ao trabalho de colocar a fundida no lixo, preferindo abandoná-la, perigosamente, a um canto. As coisas que eu imagino! Sou mesmo maquiavélico!

Mas entretanto comecei a raciocinar procurando fazê-lo com lógica, bom senso e sem preconceitos, afugentando do meu espírito qualquer eflúvio maldoso. E cheguei a uma dedução diferente. Deveras diferente.

Talvez em boa verdade se trate de uma nóvel, e económica, modalidade de iluminação natalícia que consista em espalhar ao acaso lâmpadas presumivelmente fundidas pelos passeios e ter a esperança, e sobretudo a fé, de que um milagre as acenda ao anoitecer, iluminando primorosa e maravilhosamente o nosso Concelho, enchendo o ar de doçura cálida e reconfortante.

Vou ficar à espera do anoitecer e ter muita, muita, muita fé para assistir a esse espectáculo maravilhoso que vai ser aquela lâmpada acender e iluminar a noite fria e aquecer os nossos depauperados corações. Já me parece ouvir ao longe o tilintar dos sinos e o drapejar das asas dos anjos! HOSSANA!

p.s.: valerá a pena falar de toxicidade e de civismo?

fotografia: © josé antónio 2005
local: estacionamento do Pingo Doce de Sassoeiros / escada de acesso à Torre Soleil.
data: 23 NOV 2005, 15:11

(clique na foto para ampliar)

quarta-feira, novembro 16, 2005

l'huomo diroxo e Mutcha

Em rigor, esta estória não pode ser considerada o primeiro episódio da saga "l'huomo diroxo, mutcha e siegref". Em verdade mesmo, a saga não está completa e é constituída, neste momento, por estórias esparsas sem grande alinhamento. Em todo o caso, sem esta estória nenhuma das subsequentes faz sentido, na medida em que esta introduz personagens, e dá um certo 'ambiente' e uma certa 'cor' à saga, pelo que pode ser considerada uma espécie de introdução.
Assim, a pedido da SaraMM, aqui fica:

L'HUOMO DIROXO E MUTCHA

atracções

Naquela parte da cidade as ruas eram cinzentas e sujas. Velhos edifícios abandonados, arquitecturas antigas, funções duvidosas. Vapores fétidos subindo por todo o lado, saindo de buracos engradados, no pavimento pejado de poças de água oleosa por toda a parte, conspurcado de detritos industriais e restos orgânicos.
Um saltinho...priii! Outro saltinho...priii! Ainda outro...chap!

l'huomo diroxo saltitava ao longo da rua sem passeios. Indiferente às poças de água que existiam por todo o lado, saltitava. Mãos nos bolsos, apito na boca, a pés juntos saltitava. A cada saltinho, uma apitadela. E assim avançava. Um saltinho...priii! Outro saltinho...priii! Ainda outro...chap! Entretanto, enquanto l'huomo diroxo saltitava na inconsistência do tempo e na insolubilidade da rua esparrinhando água das poças em todas as direcções, a noite caía, escorria pelas paredes, pelos objectos que encontrava no seu caminho. A noite caía escorrendo pelos corpos, sorvendo tudo o que encontrava. A escuridão fechava-se em torno dele, d'el huomo diroxo, ao mesmo tempo que alguns candeeiros — dos poucos que funcionavam — se acendiam soluçantes, enquanto perigosos smorfles ameaçavam invadir o negrume cúmplice da ausência de luz, ensaiando curtos voos, prenúncios do seu domínio das trevas. Naquele lugar, naquela cidade, o cosmos avançava e o caos recuava. Ao longe ouviam-se sons, sonoridades saxofónicas dolorosas e frementes, rasgando a noite como gritos de mocho, lembrando gotas de água a pingar sobre metal. Saltitando, l'huomo diroxo prosseguia, a pés juntos. Saltitando e apitando, saltitando e apitando...

Do outro lado da cidade, as ruas também eram cinzentas e sujas. Velhos edifícios de arquitecturas abandonadas, duvidosas intenções. Fétidos detritos orgânicos em movimento, arfantes (vivos?), alguns parados pelas esquinas, mergulhados em poças de água, reflectindo neons. Do outro lado da cidade a noite não existia. Melhor dizendo, a noite estava de tal modo transfigurada que parecia não existir. A ilusão era a norma. A ilusão era o ser. A ilusão era o caos. A ilusão... passar a noite em claro...
O olhar oblíquo, o cigarro ao canto da boca, a barba por fazer, as sereias no cais, o rugido dos motores das naves preparando-se para partir, a quietude do rio embalando ilusões (algumas dolorosas), mulheres do dia passeando na noite, neons estalando, doendo nos olhos, pavor do negro, da luz que se apaga por falta de corrente... E os pingos de água caindo sobre metal. E os mochos piando na noite, ecoando nos eucaliptos da imaginação...

Aí caminhava Mutcha. Cruzando neons, desviava-se rápida e bruscamente, no seu ar de habituée, dos obstáculos que lhe surgiam pela frente. Caminhava Mutcha. Na mão, um pião. Enquanto caminhava, descontraída, cantava mentalmente: eu tenho um pião, um pião que gira... eu tenho um pião a girar na mão; o pião, por seu turno, parecia um mocho. De madeira. Ilusão? Rumo ao bar, com o livre-trânsito no bolso, caminhava Mutcha, de pião na mão, e mochos esvoaçando no ar, cantando mentalmente. Para si própria? E assim prosseguia a noite que não era noite... Mutcha prosseguia. Indiferente, afinal, aquilo que já conhecia bem. O mocho a piar, os saxofones a tocar, o pião na mão, a canção a martelar-lhe o cérebro...

Também prosseguia, do outro lado da cidade, saltitando, l'huomo diroxo. Sem destino, resignado à sua condição de 'saltitão que apita'. Algures, l'huomo diroxo saltitava. Ausente. Foi subitamente que se apercebeu do silêncio. Parou bruscamente como se tivesse chocado com uma parede invisível. A sonoridade saxofónica que o acompanhara ao longo do seu deambular à deriva não se ouvia. Imobilizou-se. Completamente. A pés juntos. Apito suspenso entre os lábios. Respiração suspensa à entrada do apito. Apurou os sentidos. Tentou ouvir... Nada! Não se ouvia nada. Nem os smorfles. Parecia que tudo tinha parado. Então, no meio do silêncio, sem saber porquê ou como, ouviu uma canção bater-lhe no cérebro: eu tenho um pião...; um calafrio terrível percorreu-lhe o corpo amorfo. Estremeceu. E olhou.
Olhou para o fundo escuro da rua, para as poças de água a reflectir a pouca luz dos poucos candeeiros acesos, tremeu com o frio, sentiu passar sobre si o zumbido de um smorfle, encheu-se de coragem vinda não sabia de onde nem porquê, tirou o apito da boca, colocou-o no bolso, e caminhou decididamente, inchando o peito, em direcção ao negrume, desaparecendo na escuridão dos becos.

12out2002, sab., 02:50

pintura: josé antónio, 1995, guache sobre cartão, 100x70 cm

segunda-feira, novembro 14, 2005

finalmente o frio


Ainda ontem estive todo o dia apenas com uma t-shirt sobre o tronco. Sou um resistente e só aumento o agasalho quando sinto MESMO frio. Habitualmente só começo a vestir pullovers, camisolas e camisolões de lã lá mais para o Natal. E não dura muito, acabo com eles por volta do Carnaval. Gosto de sentir o corpo solto e à vontade, pelo que raramente uso muita roupa. Mas hoje não resisti. Senti a t-shirt insuficiente e tive que vestir uma sweatshirt. É por causa deste acontecimento/mudança que faço este post.

Não tenho preferências particulares por nenhuma estação do ano. Faça sol ou faça chuva, esteja calor ou frio, todas as épocas são importantes e necessárias aos ciclos vitais. Como ser vivo interiorizo esses ciclos e por isso sinto-me bem com qualquer tempo climático.

Digamos mesmo: Que valor teria o sol do Verão se não existissem o cinzento e o frio do Inverno para fazer a comparação? Não saberíamos dar o devido valor. E vice-versa, após a opressão do calor, que bem que sabe o alívio dos dias mais cálidos e das madrugadas frescas do Outono!

Transporto esta interiorização física e biológica vital para o espaço interior do meu espírito.
Não é só o corpo que se dá bem. Também o meu espírito adora mergulhar nas variantes epocais do clima. Nomeadamente por razões estético-artísticas. Neste sentido todas as épocas são belas e sedutoras. Todas me estimulam à criação artística, impondo-me os seus aspectos particulares.

É assim que quando há mudança, costumo dizer "Finalmente..."; "Finalmente o Sol"; "Finalmente a chuva"; "Finalmente o Verão"; etc. 'Finalmente', porque existe em mim um permanente desejo dessa mudança. É um movimento constante, mas em que, ao fim e ao cabo, a renovação faz com que as coisas sejam sempre novas e diferentes. Não há dois invernos iguais, duas chuvas iguais, dois nevoeiros iguais, dois granizos idênticos, todos são sempre novos, sempre outros e sempre diferentes.

O que acabo de expor tem como fundamento explicar porque digo:

FINALMENTE O FRIO!!!

foto: © josé antónio, 2005

domingo, novembro 13, 2005

fallor ergo sum


Estava já para desligar o computador e ir dormir que o trabalho castiga e vão sendo horas quando reparei BEM que dia é hoje e não me sentiria bem sem fazer este post.

A 13 de Novembro de 354 nasceu em Tagaste, na Numídia (actual Argélia), filho de Sta. Mónica e de Patrício, uma criança a quem seria dado o nome de baptismo de Aurélio Agostinho e que é um dos meus filósofos de referência: STO. AGOSTINHO.

Aqui fica uma singela memória ao jeito de homenagem.

pintura: Botticelli.

quarta-feira, novembro 09, 2005

l'huomo


Andava agora mesmo a escarafunchar no meu mac quicksilver g4 à procura de uma imagem para um determinado trabalho, quando de repente me deparei com este antigo boneco (1974).
Não recordo com que intenção (obscura?) o fiz.
L'huomo é um personagem de algumas estórias que escrevi há uns anos, e o seu nome completo nessas estórias é l'huomo di roxo. As estórias encadeiam-se umas nas outras e pertencem todas a um mesmo corpo. São como capítulos/episódios de uma obra maior, que ainda não acabei. Talvez um destes dias as solte por aí.

Para já, fica aqui o boneco, saído do fundo do baú.

© josé antónio

terça-feira, novembro 08, 2005

caça aos 'pretos'


Confesso que hesitei muito sobre este post.
Sobretudo por temer que o mesmo possa ter um tom racista ao qual sou completamente alheio. Procuro dentro do possível combater o racismo e a xenofobia.
Este meu post não tem de modo algum a intenção de ser um incentivo a esses sentimentos que, na minha perspectiva, denigrem a dignidade humana.
O meu objectivo é apenas levantar uma questão, em função dos acontecimentos recentes, que julgo dispensável referir em detalhe.

Existe uma onda de violência a alastrar pela Europa e uma vaga de incompetência generalizada para a controlar e dissipar.
As razões são fundas e históricas. São heranças dos colonialismos.
Mas as razões não são o fito deste post. De certo modo elas são conhecidas de todos.

O que eu pergunto é o que vai acontecer se não se puser termo a este descalabro.
A continuar a onda de violência, não é difícil adivinhar consequências nefastas para todos. Já morreu uma pessoa. Outras mortes poderão acontecer.
Se a violência não parar (por incompetência das autoridades e dos políticos, repito), se se generalizar a toda a Europa, sobretudo a Europa ex-colonialista, a mais atingida pelas vagas de imigração, não me custa imaginar que se acirrem os ódios raciais e xenófobos e que as pessoas, perante a passividade das autoridades, decidam 'fazer justiça pelas próprias mãos'. Não seria a primeira vez na história.

Tal pano de fundo é terreno fértil para nazis, neo-nazis e toda a espécie de fundamentalistas emergirem e atiçarem o fogo da 'limpeza étnica'. E com as pessoas a sofrerem na pele as consequências da violência, a aderência a essas teses será uma mera questão de tempo.
Como soi dizer "um diz: mata; o outro: esfola".
Não quero ser alarmista, mas se as coisas não se compõem, adivinho uma 'caça aos 'pretos'' (a).

(a) 'Pretos' é aqui um signo. Podem ser ciganos, kosovares, russos, búlgaros, portugueses, chineses, marroquinos...

p.s.: Parece-me sentir qualquer coisa de 'organizado' no que está a acontecer. Não é uma mera briga de rua. A forma estratégica como se têm espalhado os confrontos e a evolução táctica e técnica dos mesmos fazem pensar num acto concertado, com objectivos bem definidos. Ali anda mãozinha...

foto: © josé antónio

sábado, novembro 05, 2005

a lasca da unhaca


Dando continuidade (a) às minhas experiências de digitalização de pequeníssimos fragmentos da realidade, tão frequentemente ignorados pela cada vez maior indiferença da pessoa na obsessão do alienante ritmo actual, trago hoje mais uma curiosidade.

Os nossos estimados gatos domésticos têm o pérfido hábito de afiar as unhas nos sítios mais inconvenientes. Não conheço rigorosamente ninguém que tenha gato que não tenha passado pela humilhante experiência de ter que comprar um sofá novo com a desculpa de que o antigo não condizia com a nova cor das paredes... pois, pois!

Uma coisa que se encontra frequentemente pelo chão das nossas (ou deles?) casas são pequeníssimas lascas resultantes dessa saudável actividade de afiar as unhas.
É uma dessas lasquinhas, que há dias encontrei no chão do meu escritório, que aqui aparece representada.
Coisa estranha, não é? E contudo coisa tão vulgar!

tamanho: 8,6 x 9,1 mm.
digitalização a 2400 dpi.

(a) a primeira experiência aqui exposta data de 17 Setembro 2005 e tem o título de «crostinha duma feridinha numa orelhinha».

n.: clique na imagem para a ver ampliada.

quinta-feira, novembro 03, 2005

a feromona do tremoço


O homem, displicentemente sentado a uma mesa da esplanada, aguardou calmamente que o jovem moço brasuca atendedor de clientes ocasionais se dignasse prestar-lhe atenção. Passado pouco o maninho de terras de vera cruz aproximou-se da mesa e inquiriu o homem. Este, sem sequer levantar os olhos do tampo de madeira à sua frente, pediu apenas e só uma cerveja sem álcool, como tantas vezes fizera ao longo dos últimos anos. O magriço empregado era um tipo despachado e não demorou a trazer a dita, acompanhada... de um magnífico pires de tremoços, amarelinhos!
O vento parou o sopro outonal, as ondas do mar congelaram num sussurro espumoso, a terra imobilizou-se na frieza intemporal.
A questão emergiu bruta nos espíritos surpreendidos de todos e ficou suspensa no ar:
— Como soubera o empregado que o homem gostava de tremoços, se este não os havera pedido?

A resposta nasceu simples. Rasgou-se visível e óbvia. A lógica da mais pura ciência falou e disse que o empregado captara a FEROMONA DO TREMOÇO.

Tal como existem nas pessoas as feromonas que dão sinais sexuais, que transmitem desejos, intenções e vontades, mais ou menos confessáveis e confessadas, existe também a do tremoço que funciona subliminarmente como um almíscar. Esta feromona é resultado de se comer muitos tremoços ao longo da vida. A feromona acumula-se nas nossas células, concretamente nas mitocôndrias, e é exalada através da transpiração em momentos em que a sua acção química é solicitada. Qualquer animal sensível a ela, nomeadamente os empregados de mesa brasucas, subconscientemente detecta o seu sinal e percebe de imediato que aquela pessoa é um aniquilador de tremoços.
N.B.: São conhecidos casos de empregados de mesa que desenvolveram estranhas neuroses fóbicas, de tendência suicida, motivadas pela compulsão de servir tremoços a clientes que não os pediram.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Carlos Santos Bueno


No meu post sobre a apresentação de "As Margens Vermelhas" faltou dizer quem é o autor. Ei-lo, segundo o convite da editora:

"Carlos Santos Bueno nasceu em 1966 em Lisboa. Foi seis vezes campeão nacional de remo entre 1981 e 1984, altura em que desistiu de estudar por motivos de saúde, tendo nascido na provação um gosto nunca antes experimentado pelas ciências humanas, a poesia e a filosofia. "As Margens Vermelhas" desenrolam-se entre o desconcerto de um mundo desfeito e a esperança de um engenho que se mantem intacto, sendo que são estas as verdadeiras margens da poesia."


Deixo também aqui um poema dum livro que o autor tem em preparação e cuja edição se espera aconteça em Março ou Abril de 2006:

O Soldado à Porta do Templo

Mestre, o soldado à porta do templo
Perguntou-me onde ia, e disse-lhe
Que vinha ao templo para pensar.
E ele perguntou-me “porquê?”
E eu respondi-lhe que a luz,
À hora em que o sol toca a última montanha,
Também põe os raios no gelo.
E assim as ideias sorriem como os raios do sol,
E os soldados novos que perguntam “porquê?”
E o soldado deixou-me passar.

Carlos Santos Bueno, 13/10/2005