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Tenho como adquirido que o 'normal' é o que segue a norma comummente aceite e o 'anormal' é o oposto do anterior, aquilo que, pelos mais diversos e tantas vezes incompreensíveis, inauditos e intangíveis motivos, não se rege por essa mesma norma.
Frequentemente na dinâmica dos entes, o anormal, pela sua dialéctica de vulgarização, acaba por tornar-se normal. Isto é histórico.
Veja-se o caso do preservativo masculino, vulgo camisa-de-vénus, em Portugal, ou camisinha, no Brasil.
Durante muito tempo foi considerado uma coisa obscura e obscena, julgo mesmo que obstipante, nomeadamente nos primórdios em que era feita de tripa de porco, acerca da qual não se devia falar ou escrever, muito menos exibir, e que hoje, não só se refere livremente em todos os 'media', como se pode adquirir nos supermercados. Vulgarizou-se. Passou da anormalidade à normalidade.
Ou o caso da homossexualidade, vulgo paneleirice.
Durante muito tempo foi considerada 'anormal' e até mesmo uma doença. A própria Ciência, num conluio com a igreja ainda não devidamente esclarecido e clarificado, aprovou e sancionou esta tese, dando-lhe fundamentos científicos, durante muito tempo incontornáveis. Contudo, hoje em dia assiste-se a uma inversão de valores e é o heterossexual que é subrepticiamente e subliminarmente considerado um anormal (freak, em inglês). A um tal extremo tal, que os heterossexuais começam a temer assumir a sua condição, com medo de serem alvo de represálias sócio-profissionais...
Em suma, o que no passado era anormal hoje é normal, e vice-versa. Esta é a dinâmica das coisas.
É por isso que não compreendo que esdrúxula lógica subjaz a certas modalidades de pensamento de determinadas pessoas.
Por exemplo, o caso da BICA.
Refiro-me à pequenina chávena de café expresso pela qual pagamos quase dez vezes mais que o seu real valor.
Quantas vezes, ao pedirmos uma bica num estabelecimento, o empregado nos olha com ar de quem julga que estamos a falar chinês e nos pergunta "a bica é NORMAL?"
Confesso que fico frequentemente sem palavras.
Por uma razão simplérrima: não sei o que é uma bica anormal...
Respondo, quase sem dar por isso, que "Sim."
Muitas vezes apenas acenando com a cabeça, numa inconsciente e paupérrima imitação de uma cornuda vaca com tonturas.
O caso repete-se tão frequentemente, que acabou por se tornar uma obsessão compulsiva reflectir sobre a questão: "O que é uma bica anormal?"
Confesso que por vezes tenho a tentação de não responder ao empregado, com a esperança de que ele decida por 'motu proprio' trazer-me uma das referidas bicas anormais, de modo a eu poder tomar contacto estético (aisthetikós), sensorial, com ela e poder apreciá-la em todos os seus caracteres. Percepcioná-la em toda a substância do seu ser, na sua concreção, em toda a sua constância e inconstância.
Já pensei mesmo em tomar a iniciativa e na altura de responder, pedir uma bica anormal.
Mas temo.
No momento de o fazer, quando o empregado ali está solicito com aquela típica e promíscua cara de boi à minha frente, aquele seu ar de borrego trombeiro, aguardando uma resposta, faltam-me as forças, vou-me abaixo pois um enorme terror invade todo o meu ser.
Temo que o pedido, verbalizado finalmente, soe na minha límpida boca como uma ofensa conspurcativa aos mais altos valores pátrios, e a polícia me leve para interrogatório numa cave escura, fedorenta e húmida (sofro muito com a humidade, tenho bronquite asmática) ou, pior ainda, que apareçam uns senhores corpulentos com ar labrego mas fardados de branco, que me metam num carro com pirilampos luminosos e me levem para um quarto forrado de paredes nacaradas de branco e me obriguem a ver as gravações todas dos programas da Maria de Lurdes Modesto ou, pior ainda, a fazer cunnilingus à Manuela Ferreira Leite.
Quando me preparo para formar as palavras, que não chegam a vibrar, nem nas cordas vocais da minha garganta nem no ar à frente dos meus doces e carnudamente lascivos lábios, o meu coração decide por sua auto-recreação trabalhar como um cavalo a galope e o meu sangue, indiferente ao seu carácter O Rh+, lateja nas minhas têmporas com o rufar de mil tambores.
A minha tensão altera-se e sobe até níveis mortais, mesmo para um rinoceronte.
Suores frios invadem-me e sinto a transpiração escorrer-me pelas vértebras num fiozinho gelado que parece o gume duma lâmina de barbeiro a correr-me a espinha. Penso que vou desfalecer. Uma tontura toma conta da minha pobre existência.
Fico literalmente congelado e a resposta acaba por sair automática: "Sim, Se Faz Favor."
Acobardo-me. Escondo-me no meu íntimo, enrolado num casulo de arame farpado que construí de propósito para estas ocasiões e que faria inveja aos israelitas.
Sou previdente. Tenho sempre este casulo à mão-de-semear para qualquer ocasião em que necessite de refúgio rápido e imediato.
Adio. Protelo.
Um destes dias, talvez me ocorra ao espírito um vulgar e vernacular "Foda-se!" e quando já nada tiver a perder pronuncie a expressão fatal: "Dê-me uma bica ANORMAL, se faz favor!!!"
foto: © josé antónio