domingo, outubro 24, 2004

coleccionava singularidades


Coleccionava singularidades.
Começara ainda miúdo com um pequeno fóssil de turritela (1) que encontrara numa escarpa rochosa da praia onde passava as quentes e doces férias de verão.
Apanhou-o do chão com os seus pequenos dedos, rolou-o e observou-o com atenção fascinada. Uma pequena rosca de rocha dura. Cem milhões de anos na ponta dos seus dedos juvenis. Um frémito percorreu o seu corpo. Um tiranossaurus rex rugiu ao longe. Apertou a pequena rocha fusiforme na palma da mão e forçou as pernas a moverem-se. Era difícil mover os pés, mergulhados no lodo cretáceo. Mas conseguiu. E caminhou seguro sobre a areia quente da praia, sob o sol escaldante e inclemente, até ao chapéu de sol onde a família estava abancada.
Quando as férias terminaram levou para casa aquele objecto precioso, aquele tesouro singular, e guardou-o bem guardado no seu quarto. O tempo passou e regularmente pegava no objecto e observava-o com paixão e fascínio, pensando "onde este estava há mais e vou recolhê-los!"
E recolheu. Mais turritelas. Não só naquele local mas em muitos outros onde as encontrava. Não só turritelas mas tudo quanto fosse fóssil, pedra curiosa, cristal, pedaço de madeira, objecto curioso, singularidade...
Por todo o lado, em casa, no sotão, na arrecadação, nas gavetas, sobre os móveis, em caixas velhas de cartão, aqui e ali, havia objectos da sua colecção.
Mas sentia-a sempre incompleta. Não conseguia considerá-la terminada, completa e finita. Sentia que 'cabia sempre mais um'. Havia sempre mais um objecto a acrescentar. Aparecia. Encontrava-o. Achava-o. Não o podia desperdiçar e deixar a colecção incompleta! Assim, juntava, juntava, juntava...

O miúdo tinha crescido. Fizera-se homem adulto. E a colecção crescera desmesuradamente. A maioria dos objectos, para os outros, era apenas 'tralha'. Não tinham valor nenhum. Quanto muito haveria um ou outro mais 'giro' ou 'curioso'. Apenas isso. Mas para ele era bem diferente. Eram valiosíssimos. Eram a Sua Colecção! E valiam pela singularidade. Não se conseguia desfazer deles, de nenhum deles. Não conseguia sequer imaginar-se sem eles.
Sonhara um dia organizá-los numa espécie de mini-museu caseiro. Organizados e dispostos em belas prateleiras de vidro, iluminados com arte e com pequenas etiquetas identificadoras. Mas via cada vez mais longínquo esse sonho. Razões económicas, já se vê. O que não o impedia de continuar a coleccionar. A colecção infinita.
Por vezes olhava um ou outro objecto da sua colecção, que descobria ao abrir uma gaveta ou a porta de um móvel. Uma velha lupa de vidro da qual sobrara o aro e a lente e desaparecera a pega ou um pequeno canivete suiço ao qual faltava o palito, a sua primeira máquina fotográfica para a qual já não havia rolos, um dente de cavalo achado na praia e metido numa caixinha plástica com um algodão no fundo, a ocular da máquina fotográfica que se avariara, desmontara e 'lixara', o passe de estudante da CP de Oeiras a Cascais com o velho bilhete mensal de 47$50, uma lente de óculos com função de godé suja de gouache, uma lanterna que há anos não funcionava, um isqueiro a gasolina trucidado por um carro e todo amachucado, uma pequena válvula de combustível de um avião T7, parafusos, porcas, pedras, conchas, pedaços disto, pedaços daquilo, pedaços de tudo e pedaços de nada, porções, completudes, singularidades..., e pensava "para que quero eu esta merda?" Mas não conseguia deitar o objecto fora. Sentia-o como único no cosmos. Podia haver muitos parecidos, mas nenhum rigorosamente igual. O que o tornava singular. E lhe dava um valor inestimável. E lá voltava o objecto para a gaveta ou caixa de onde tinha saído.
Chegou a pensar em organizar os objectos em colecções temáticas: moedas, selos, postais, fósseis, fotografias, rochas, búzios e conchas, desenhos, navalhas, livros, miniaturas, isqueiros, óculos, canetas... Uma Colecção de Colecções! Mas não funcionou. Apareciam sempre novos objectos a abrir novas rubricas e outros que 'voavam' de rubrica em rubrica. A carteira profissional da avó ou a certidão de nascimento do pai entravam na rubrica 'documentos', na rubrica 'história', na 'família' ou em 'testemunhos do período fascista'? Que confusão!
Assim continuou, como sempre. A juntar. Juntando, juntando, juntando...

Coleccionava singularidades.

(1) - TURRITELLA - PALEONT. Foi Lamarck quem, pela 1.ª vez, em 1799, designou este gén. de animais marinhos por este nome. A concha é cónica, alongada, com muitas espiras bem individualizadas; ornamentação formada por cordões longitudinais, tornando-se granulosa nos ambientes salobres; durante o crescimento de cada indivíduo os caracteres ornamentais modificam-se; este facto permite reconstruir as afinidades inter-específicas. Abertura holóstoma, oval ou arredondada. Os animais do gén. T. apareceram no Cretácico, tiveram a maior expansão no Terciário e chegaram à actualidade, sendo vulgares nas praias portuguesas. Os fósseis são extraordinariamente abundantes em certos sedimentos miocénicos de Portugal, apresentando formas muito grandes.
in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Verbo, V. 18, p.277

2001, Oeiras

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