quarta-feira, novembro 30, 2005

solução dentária de um pobre


Há verdades insofismáveis. Esta é uma delas. A de que poucas são as pessoas que chegam ao fim da vida com os seus dentes naturais. A excepção, de um modo geral, aplica-se àqueles que por esta ou aquela razão morreram novos. E muitos, talvez nunca tenham entrado num consultório de dentista. Tinham carros demasiado velozes.
Para todos os outros, que somos nós, a realidade é outra. A nossa vida é um permanente atentar contra a saúde dos nossos dentes por via do tabaco, do álcool, das drogas, de utilizar os dentes para abrir embalagens teimosas, dos maus hábitos de higiene dentária, lambidelas das gengivas alheias e dos dentes cariados dos parceiros e parceiras, chupadelas de línguas, sexo oral, fellatio, cunilingus, beijos no ânus e etecéteras.
A verdade é que para a maioria de nós, mais cedo ou mais tarde, numa corriqueira consulta de dentista o homem da bata branca e alicate na mão nos agride com aquela afirmação "estes dentes estão muito beras, têm que ser tirados, depois pomos uma prótese dentária..."
E a calma e descontração com que os gajos dizem isto! Como se fosse um mecânico a dizer a um cliente que o carro precisa de mudar o filtro de óleo...
Enfim, alguns mais aventureiros, ou talvez resignados, aceitam a coisa à primeira (julgo que talvez por acharem que a vida é uma foda permanente e por isso...) Outros só se deixam convencer após um ou dois anos de dores de dentes, abcessos, terabites de analgésicos, antibióticos e anti-inflamatórios, uma estupidez auto-administrativa pseudo-medicinal porque o problema é mesmo e só: um dente na merda e a solução é extirpar o diabinho.

Então, marcada a consulta lá se apresenta o 'desgraçado' para a matança. Sim, matança. Um dente é uma coisa viva e, já agora, uma coisa viva que faz parte do nosso corpo, porra!
Não valerá a pena entrar agora em pormenores sórdido sobre a extracção dos dentes para não ferir susceptibilidades. Há pessoas muito sensíveis à visão do sangue e de agulhas, além de não suportarem o barulho da broca (brrrrrrrrrrrrr). A verdade é que um bom dentista, em pouco mais de 5 minutos, é capaz de extrair quase todos os 32 dentes a um ser humano. E se for alentejano ainda arranja tempo para ir dar uma rapidinha à Maria Papoila, que anda a pedi-las.
Quanto a prótese dentária (no vulgo conhecida por 'placa' ou 'dentadura') o arranca-dentes tem o hábito de propôr 3 preços, correspondentes, grosso modo, aos 3 estratos sociais. A 'perereca', a mais barata e de pior qualidade, que se racha ao meio três meses depois à primeira pratada de cozido à portuguesa ou entrecosto na brasa; uma assim-assim que se aguenta bem desde que se cole com polident, mas não é das melhores e passa a vida a querer fugir da boca, sobretudo quando a pessoa espirra, tosse, dá um peido ou faz força para defecar; e a totalmente de acrílico, feita à medida, super, a mais cara, à prova de raios gama e que dura até à próxima glaciação (como se um gajo estivesse preocupado com essa merda...)
O problema que sempre se coloca, e isto é um drama português que parece não ter fim, é estabelecer a melhor relação qualidade-preço. Claro que a priori qualquer um optaria pela placa de melhor qualidade, mesmo sendo a mais cara, se tivéssemos um serviço nacional-racional de saúde decente. Mas não temos. As placas saem-nos, literalmente, do bolso, para nos entrarem pela boca dentro.
Assim, as pessoas avaliam o que podem pagar e juntam-lhe a previsível comparticipação, quando esta é possível, perguntam ao homem da bata branca se podem pagar em duas vezes com cheques pré-datados e escolhem. Enfim, é como é.

Agora o meu drama.
Eu passei por esta merda!
Com uma diferença. Não havia comparticipação alguma e tudo tinha que ser pago do meu bolso. Que tinha um buraco no fundo maior que a c... da Cicciolina, pois!
Assim, pedi milhões de desculpas ao homem da bata branca, disse-lhe para me arrancar os dentes, mas que quanto à placa precisava de tempo para pensar, e que depois lhe diria alguma coisa.
Um dia de manhã lá fui à consulta e voltei com cinco dentes a menos. Não, não doeu mas é uma sensação estranha a porra da língua encostada à parte interior lisa e molhada do lábio inferior. Um gajo tem uma permanente sensação, que dura dias, de estar a fazer uma trombada!
Seja como for, eu tinha um problema para resolver. Precisava duma placa e as soluções propostas pelo homem da bata branca não se me afiguravam exequíveis. Eu andava mesmo muito desabonado.
Então, para pensar no assunto, um dia lembrei-me de ir passear até à cidade-luz. Não, não é Paris. Vocês têm a certeza que conhecem Lisboa?
Fui andando por ali às voltas a passear ao acaso até que me apercebi que estava no Campo de Sta. Clara e que era dia de feira. Pois, eu tinha, por coincidência, ido parar à Feira da Ladra, um dos mais importantes centros comerciais de Lisboa. Curioso, gosto de velharias, velhacarias, e também de apreciar as coisas roubadas, circulei pela feira descontraído. Mais ou menos. Ia particularmente atento ao bolso do blusão onde transportava a carteira e ao bolso dos jeans onde tinha o telemóvel. Nunca se sabe.

E então aconteceu. Ao acercar-me de uma banca, que não passava de um trapo cinzento emporcalhado estendido no chão com tralha em cima, vi uma impresssionante caixa de sapatos.
O que tem de impressionante uma caixa de sapatos? Nada. O que me impressionou naquela é que estava cheia de... dentaduras!
Montes e montes de dentaduras de todos os tamanhos e feitios. Havia algumas muito brancas, duas ou três mais amareladas, uma acastanhada com sinais de nicotina de fumador de cachimbo, outra com os incisivos magnificamente estalados e, impressionem-se com a riqueza do acervo, até uma com um pedacinho de um palito e restos de comida entre os dentes!
Perguntei ao homem o preço.
O homem, um magriço escanzelado com olhos de cão à espera de ser atropelado, e uma tromba que me lembrou vagamente um porco que vi numa feira de gado em Travanca, respondeu-me que "as simples custavam 5 € e as outras 7 €". Não percebi lá muito bem aquela distinção entre 'simples' e 'outras' mas pareceu-me que tinha a ver com o número de dentes. Ou com as ventas dos clientes...
Ora eu precisava de uma com 5 dentes para o maxilar inferior.
Disse isso ao rapaz-fronha-de-suíno e ele tentou impingir-me uma, suja de bâton rosa, de facto com cinco dentes, mas para o maxilar superior. Disse-lhe que não dava e ele, com argumentos que me lembraram os políticos em campanha eleitoral, tentou convencer-me a usá-la e que dava se a virasse de pernas para o ar! Fiquei fodido com o gajo! Estes cabrões andam a gamar para a droga e ainda me tentam ludibriar! Estive a ponto de explodir e mandar o gajo "bardacaca, bardachicha e bardaporra", para não o mandar "bardamerda", mas lembrei-me do governo e acalmei.
Respirei fundo, remexi e remexi na caixa com as placas, e acabei por finalmente escolher uma, após a ter posto na boca para ver se me servia. Não magoava e era a minha medida. Não tive coragem para perguntar ao moço-reco se tinha um espelho onde eu pudesse apreciar a composição do meu rosto com a placa. Temi que me mandasse bugiar e que já não me vendesse a placa, o que seria uma lástima.
Ainda me quis levar 7 € pela placa com o argumento de que a mesma tinha pertencido a um conhecido professor universitário, mas não acreditei na história e dissse-lhe isso mesmo, argumentando com ele que o sabor a fénico da placa demonstrava sem margem para dúvidas que a mesma pertencera a um fiscal das actividades económicas gay ou a um sacerdote pedófilo. O tipo aceitou o argumento, depois de olhar desconfiado em redor de nós, pediu desculpa, acho que "A do professor é esta mais amarelinha", e aceitou os 5 €.

Meti a dentadura na boca e voltei para casa, sorridente, sentindo-me um homem novo.

1 comentário:

Caracolinha disse...

Meu querido primo caracol ... tá-se ????

Para não variar chorei a rir com o teu coméntário e respondi-te !!!!

Já te linkei lá na casquinha e vim agora experimentar se o link funciona direitinho ... e não é que vai da minha à tua casca num pulinho ????

Beijoca, das nossas, encaracolada, tá claro !!!! :)